quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
















A MATANÇA DO PORCO (naquele tempo)

(Senos da Fonseca)



De entre as memórias de rapazito que com frequência me ocorrem da matança do porco, das mais duradouras, e uma daquelas que com mais intensidade me ficou gravada desse tempo, em que, garoto despreocupado, inserido numa família onde as tradições eram - ainda! - para durar, ia vivendo as peripécias do dia a dia, e pouco a pouco me apercebendo como era intensos e se fortaleciam, os laços de amizade, aproveitadas que eram todas as ocasiões para conseguir tal desígnio.

As relações familiares dos «Fonsecas», lavradores vindos com a história da Vila, eram muito próximas, reforçadas por uma contínua presença em casa de uns e outros, numa vivência onde a partilha era lei.

E nem um facto insólito perturbou essa proximidade.

Refiro-me a que o meu avô, o Prof. Fonseca, ter sido deserdado, e ter perdido o Morgadio. Porquê? - quererá, possivelmente, o leitor, ser informado …
Pois por um rocambolesco caso de amor; uma cena digna de romance Camiliano, quando apaixonado pela Maria Rosa (que foi minha avó), moçoila bonita, rapariga de trabalho, simples e de poucas ou nenhumas posses, decidiu romper com a oposição familiar ao casamento com aquela, que tinha as origens em família pobre de pescadores, os «Arrombas». Decidido a casar com ela, mandou às malvas a recusa dos seus, abastada família de lavradores lá do Cimo de Vila que, como era hábito nesses tempos - já tive ocasião de o contar em detalhe – escolhiam para mulheres dos seus filhos –especialmente do primogénito, o Morgado – mulher de cabedais idênticos, para reforço e engrandecimento da sua «CASA».
Ora, num belo dia, meu Avô, não esteve com meias medidas e filou o padre (seu familiar) pelo pescoço, trancando-se com ele e com a Maria Rosa, na Capelinha da Sr.ª do Pranto, chave do portal no bolso, e onde frente ao altar da Senhora, avisou o fradaço:
-Vá!: -ou case-nos … ou encomende-se que vai de catâmbrias para o inferno. Não me moa a paciência, e poupe a Senhora a espectáculos impróprios para santas.

O pobre, que conhecia bem o Professor, transido de medo perante as palavras que parecia feriam lume, e do olhar decidido e convincente de meu avô – algo que era bem conhecido por aquelas bandas –, logo se apressou a entaramelar o «in nomine patris …» para abençoar e tornar lícita, à luz divina, aquela união. Desse dia em diante, a Maria Rosa - que não deixou, toda a vida, de tratar seu marido por «Sr. Professor »-, foi uma mulher feliz, e uma respeitada mãe de farta prole.
Apesar da perda do Morgadio - e consequentemente de todos os bens - meu avô foi sempre reconhecido como o Patriarca - como o seria depois meu Pai - acarinhado por todos que o tratavam por «Padrinho», venerado, respeitado, e obedecido – quando preciso fosse por um par de bem aconchegados cachações ou reguadas - nas pequenas tricas familiares, sendo o elo de fortalecimento do clã.

Seu filho, meu Pai, tinha ainda tiques claros, reveladores da sua origem, com uma paixão louca por tudo que dissesse respeito à lavra. Nos quintais lá de cima, tudo era simulado à imagem de uma grande lavra: fazia-se farto vinho – do enforcado –, que me competia a mim e a meu primo calcar na dorna; cultivavam-se todas as espécies de verduras; mantinham-se e renovavam-se, com um amor indescritível, árvores de fruto da mais variada espécie e sebavam-se porcos com um desvelo como se tratassem de animais de estimação (embora o destino destes fosse uma morte, morte que quase parecia heróica, gloriosa). Recriava-se, dum modo muito real e muito expressivo, uma casa de Lavoura, de que a irmã Vicência – a tia Vé - era a administradora permanente e a incansável obreira, nos momentos pós aulas…


Neste ambiente a matança do porco era uma verdadeira festa, durando, no mínimo, três dias.
Mas, muito antes da data aprazada para o acontecimento, já eu acompanhava o meu pai a visitar, um a um, «os primos», em verdadeira via sacra com o fim de indagar, e melhor comparar, o estado de desenvolvimento dos porcinos dos primalhos, já que cada qual pretendia que o seu fosse, o maior e o mais vistoso de entre todos e nisto “ cada bufarinheiro louva os seus alfinetes “, é certo. «Primos» era «coisa» que não faltava: - parecia existir por todos os lados, Cimo de Vila, Cruzeiro, Moitas, Vale d’Ílhavo, etc; as visitas sucediam-se, eram constantes, e sempre que se batia à porta, depois dos abraços, era sacramental ouvir:

-Oh primo «doutor», já não vai daqui sem jantar. Que a «Maria» até levava a mal. Vamos provar o palhete, enquanto ela prepara uma cabidela de galo, de estalo.


As «primas Marias» -todas elas! - eram mulheres governadeiras, escufenadas, mulheraças de brio, caprichosas no bem receber, desempoeiradas e breves em ir buscar –e torcer o pescoço - ao melhor cantador da capoeira e, num zás-trás, enquanto a conversa e as provas decorriam, já o bicho estrebuchava na caçarola, cheirando que regalava, o que nos tirava todas as dúvidas –se é que as tínhamos ?! – de desertar.
Lá íamos, então, fazer horas para a adega, no alpendre, para a prova do «enforcado»; retirado o espiche à pipa e aparado no copo a borbulhar, eles diziam – e a mim, confesso, me não parecia - ser veludo a escorregar gorgomilos abaixo, vivinho, fresco, ágil a deslizar, mais parecendo canto celestial a pedir acompanhamento à altura : -um naco de chouriça entre dois taleigos de broa, cozida no dia, tão rescendente que consolava, vitualhas em que eu, propriamente cascava, até me refastelar. Mais uma saúde, mais lérias, vizinho que aparecia e fazia teima de irmos provar «a sua pipa», o que valia é que o dito era «água pintada», e, tal como se bebia, também logo se vertia numa ida ali ao quintal, que já venho….


Claro que o fundamental – dar uma olhadela ao bicho – lá era feito, mirando-se de todos os ângulos com o fim de medir o animal, e de dar palpites. Depois das provas o bicho até parecia aumentar de bojo: -quem bebe pelo S. Martinho faz de velho e de menino.
Chegada a hora, anúncio vindo lá de dentro alertava para a prontidão da cabidela malandra que fumegava na caçoila, já albardada na mesa. Abusacávamo-nos na casinha da lavoura - cozinha do dia a dia -, à lareira, onde chiavam uns cavacos espevitados, local onde o meu Pai insistia em ficar, apesar da pena da « prima Maria», desejosa de pôr os pratos de cavalinho na mesa aos ilustres familiares (?!), guardados que estavam para as grandes ocasiões, no aparador da sala. Por ali ficávamos a contar estórias, em mais um seroar. Às vezes, diga-se, nem sempre por mim muito apreciado, já que lá se ia uma tarde própria para namoriscar, actividade para a qual eu revelava, já então, muito mais credenciais do que para a «lavra». Mas diga-se, que entre umas horas de desvelo amoroso e uma boa cabidela, o diabo que escolhesse. E depois, dias para namorar, eram mais que muitos. E para a cabidela, nem todos. Só quando caía do céu tal iguaria. E nestas coisas, é bem certo: antes desejo que fastio, que o que é bom, não dura. E é bem verdade: - mais vale ovo hoje, que galinha amanhã.

Mas voltando ao bácoro…

O olho do dono engorda o animal mas certo é que era normal, naquele tempo, os mesmos atingirem pesos, entre as catorze e as dezasseis arrobas. Eram animais impressionantes, que para o fim já não se tinham nas patas, vivendo deitados para a seba final, por vezes alimentados à mão, já que nem tal exercício conseguiam fazer pelos próprios meios, dado o estado de prostração provocado pela (excessiva) obesidade, deliberadamente provocada.


O dia da «Matança»

Chegado o dia, logo de manhãzinha, caldeiros bem cheios de água eram postos na lareira da casinha, que crepitava.

O matador era, nada mais nada menos, que o meu primo Manuel Fonseca Jr. - o sénior era o meu Pai. Que recebera as facas do seu Pai, José Fonseca, meu tio – avô. Não, não eram faquinhas de cortar a broa ou chouriça, ou o queijo (com olhos ou sem eles). Nada disso. Eram facalhões de arrepiar um mortal. Que ao velho José Fonseca tinham sido legadas por seu pai, meu bisavô. Dos varões da família, já então só restava eu, por cá. Assim, se a tradição fosse seguida, essas facas – que confesso me arrepiavam! - deveriam ser-me entregues para «continuar» a saga, e exercer o mister, praticamente um monopólio familiar, aqui na terra. Deus me salvasse! - pensava eu, arrepiado só em as ver. Eu nunca neguei o berço: mas só de pensar que tal me podia calhar em sorte, estava disposto, como meu avô - e por muito menos! -, a renunciar a todo e qualquer morgadio de matador.Mais vale um gosto que os três vinténs, é certo, mas eu não tinha queda para ser el matador. Era bem verdade, desculpem lá isso os meus anteriores, que no resto até julgo não os ter deslustrado, que se veja.

Chegava pois o Manuel – um poder do senhor, biganau de uma força bruta, exímio jogador de malha, e habitual ganhador do jogo da corda, presença obrigatória das romarias ao tempo - trazendo as ditas, chegando-se ao animal para com o seu olhar sabedor garantir (apostar!) o peso esperado para o bicho.Tendo sido emigrante quando novo, nos States, fazia gala de se exprimir em americanês: - nice boy - good pig - dizia , e com um primeiro ,« VIVA A PÁTRIA», dava início à função, que homem lento p’ra nada tem tempo…

O suíno que já nem se podia mexer era levado de padiola (ou em cima do arado)




Fig. 1- O animal no arado

para o «caminho» para ser colocado no carroço (ou numa escada) ,com a cabeça quase ao nível de solo, e fixo – fosse lá saber-se se o abate correria bem – com um adibal atado aos presuntos posteriores, que o fixavam ao leito da morte, mas mesmo assim fortemente agarrado pelos rabeiros.



Fig 2-Em cima do carroço



Dois valentes fixavam as patas do animal que ia ser sacrificado. Avante, um deles puxava a pata para baixo, enquanto o outro levantava a dextra do bicho, para cima, O matador colocava então o braço por debaixo do cachaço, cingindo o animal, e com a direita agarrava num pano,






Fig 3- Lavagem da peituga

que mergulhava em água a ferver, para, com ele, limpar a zona onde iria dar o golpe fatal. Uma última olhadela, – «camóne let’s go: - VIVA A PÁTRIA», concentração, e aí vai disto: sem hesitar, num golpe certeiro, a faca terminada em bico - uma monstruosa lâmina de uns trinta centímetros – afiada e pronta a cortar papel, entrava no pobre bicho que lançava um grunhido de dor assustador, roncos arrepiantes ao sentir-se ferido de morte. Eu que fazia de conta que passava as facas ao meu primo – que era para me ir habituando: - diziam! - fechava os olhos ao ver o sangue sair em golfadas enquanto o matador rodava a faca, abrindo ainda mais o golpe, no sentido de facilitar a saída do sangue que era aparado num alguidar postado em sítio certo para receber o esguicho.








Fig 4 – O aparar do sangue


Era fatal que chegaria o momento, em que o primo Manel fazia de conta que o animal se escapava, e, balançando com a cabeça do pobre bicho, gritava:
-Takerease…baby be quiet …
o que fazia com que o mulherio presente desatasse a fugir, pirando-se como um bando de pardais à vista do milhafre.
A verdade é que em poucos minutos, a vida do animal esvaía-se. Do forte grunhido, ia restando um rumor de sofrimento do animal, como que despedindo-se da vida. Quando já não mexia - salvo pequenos estertores, reflexos musculares – lá vinha novo «VIVA A PÁTRIA» ,«VIVA O ANIMAL» ,o que levava todos os circunstantes a levantarem o seu boné - ou garruço -, saudando o bicho pela galhardia (?!) com que encarara o sacrifício.

No sangue aparado, eram então feitos dois golpes em cruz, e depois de temperado com sal e limão, seguia de imediato para o caldeiro, onde a água a ferver o esperava. Cuidava-se que nenhuma mulher naquele período, tocasse no sangue –“para não o coalhar”. Nunca soube a verdade do dito, mas o certo é que tal se dizia suceder, fosse com o sangue do porco, com o leite creme ou maionese etc. Seria?

O porco era então arriado e deitado no chão.
Ia começar a chamuscagem do seu pelo. Coberto de agulhas, a que era ateado lume, o matador e um ou outro conhecedor, com a ajuda de dois paus de feijões, iam-nas movimentando pelo corpanzil, percorrendo o lombo do animal de modo a chamuscar o cabelo, com o cuidado extremo de evitar qualquer queima do couro.




Fig 5 – Preparando a cama para a «chamuscagem» do animal


Era uma operação que exigia muita atenção, destreza e habilidade. Chamuscado de um lado e do outro, com uma fogueira concentrada junto dos pezunhos, retiravam-se as unhas – as castanholas –, momento que servia de diversão aos mais novos, para as meterem nos bolsos dos assistentes. Não era uma operação nada fácil; tinham-se de aquecer bem os pezunhos para os cascos incharem, e se separarem, e puxá-los com eles a ferver, de uma palmada: shit …até fervem, - dizia o Manel Jr., escaldado.

Iniciava-se então a operação da lavagem e raspagem - o fazer a barba - ao couro do animal ; com água corrente e equipados com caliças (de adobe) ia-se afeiçoando o couro cabeludo do bicho, utilizando-se no final uma faca do tipo das usadas no bacalhau para o trote, com que se fazia um escanhoar cuidado, até se obter um couro bem amarelo e macio, aqui e ali chamuscado, mas nunca queimado.

Terminada a tarefa cortava-se o rojão do carro: - o cagueiro do porco. Era-me destinado o agarrar da língua do animal, com toda a força, para, diziam-me – e eu pantono acreditava – que tinha de a segurar para que as tripas não saíssem, por detrás do bicho.

ESTÁVAMOS ASSIM CHEGADOS AO FINAL DO 1º ROUND

-INTERVALO

Da cozinha vinha então um cesto poceiro com sarrabulho cozido, a escorrer em cima de ramos de louro, fresquinho, uma broa cortada e um prato e uma quarta de verdasco. E copos para todos. Depositado o manjar sobre uma toalhinha estendida sobre a barriga do animal, que dispunha bem enquanto se saboreava o sarrabulho e se cavaqueava contando estórias de outras matanças, comparando-se animais, recentemente abatidos.

Terminada a refrega do repasto entrava-se em nova e decidida azáfama.

O porco era puxado para dentro da adega, e nos tendões das patas traseiras era enfiado o chambaril, uma peça de madeira por onde, com a ajuda de uma talha, se içava o animal, fixando-o no gancho preso no tecto.

Bem suspenso, o chão juncado de agulhas para apararem os restos sanguíneos do animal, o matador mudava de faca, empunhando agora uma outra mais curta, com gume tão bem afiado como se tratasse lâmina de barbear, e fazia com ela, uma incisão nas duas abas do animal, de cima abaixo, deslocando o manto da barriga, atoalhando-o nas costas do animal. Desse modo tinha acesso às vísceras do animal; com um alguidar trilhado entre as patas dianteiras, com gestos seguros e rápidos, de sabedoria acumulada, conseguia extrair todo o aparelho digestivo do animal (com especial cuidado, as tripas, para que não rebentassem), que passava ao mulherio, para serem levadas ao rio da Fontoura, onde se procedia uma escufenada lavagem em água corrente, retirando-lhe os folhos: as sainhas .Com as tripas lavadas, esfregadas com sal, far-se-iam as linguiças e salpicões, que iam a estagiar no fumeiro da casinha velha, até ficarem no ponto para degustar.
A mim era-me entregue a bexiga e o pissalho. A primeira, depois de fumada, dava uma excelente bola. Por seu lado, o «dito» do animal, era graxa excelente para ensebar as botas, impermeabilizando-as.

E assim íamos esgotando as horas…

O primeiro dia da azáfama estava a terminar. O animal, limpo, ficava a escorrer todo o resto do dia e toda a noite, pois só no dia seguinte se iniciaria o seu desmancho (desmembramento).

Era chegado o momento de nos sentarmos, matador, ajudantes e alguns familiares, entretanto chegados pelo fim da tarde, em volta da mesa, para um pausado e retemperador repasto, onde se recuperavam os humores e se apreciavam as primeiras vitualhas porcinas do animal, sacrificado.

Uma sarrabulhada bem apurada, sangue cozido acompanhado de fígado cortado às lascas, a boiar num molho gordalhudo onde refogava uma forte cebolada, temperada ao ponto com fartura de pedacinhos de alho, e umas folhas de louro, que lhe davam um odor catita. O verdasco -pinga de estalo, diziam! - corria então da picheira para os copos, que sôfrega e insistentemente eram chamados à boca. E à medida que tal chamada se fazia, a língua começava a soltar-se, e a jantarada tomava foro de festa.

Estômagos já recompostos, vinha um arroz amalandrado de bofes avinhados (e ou de labercas), que fazia companhia a uma bifalhada cortada apressadamente das franjas entremeadas do animal. Noutra pichela, lá vinham as iscas embrulhadas numa cebolada avinagrada, pitéu de fazer soar as campainhas gulotonas, que faziam um indígena levantar-se lesto, quebrando as regras de mesário, não dando tréguas à digestão ao empanturrar-se com a iguaria.

Findo o repasto porcino, lá vinham umas «castanhas abafadas».
Era tempo para divertimento.
O primo Manel era um tocador emérito da concertina. Meu Pai também tocava o mesmo instrumento, embora fosse mais tosco de mãos. Tocava-se e dançava-se numa alegria que envolvia todos os presentes. Até a minha Tia Micas - sempre muito reservada -, não se escusava a desemalar o bandolim para acompanhar os tocadores, que incansavelmente davam à sanfona .Mas o que mais me impressionava era ver o meu tio - avô José Fonseca[1], já cego e com uns bons oitenta anos, cantar ao desafio - no que era inacreditável e inexpectável - a pandegar numa espécie de dança feita sobre os joelhos dobrados, que só muito mais tarde vi ser muito semelhante às danças cossacas.
A noite corria entre palratórios e lenga-lengas, e só tardiamente, já bem lastrados, se recolhiam, os convivas a penates, pois ao outro dia novo trabalho a requerer a presença do matador.

2º Round

Logo de manhã começava nova faina.
Arriado o porco, procedia-se ao seu desmanche, tarefa para o que me lembro ser especialmente dotado: - com muito jeito, dizia-se, parecendo com isso quererem dar-me alento e predisposição, para herdeiro da tradição.
O desmanchar do porco era feito com critério e ao gosto da dona de casa, que dava, amiúde, indicações de que tamanho queria as peças que se iriam separar.
Tudo cortado, peça a peça, procedia-se à salga das mesmas, numa salgadeira de cimento, onde se depositavam as peças separadas por sal suficiente para as conservar, dispostas por ordem, ou critério de utilização: no fundo, acamadas, ficavam as mantas de toucinho; depois os ossos de assuão, costela, coiratos, etc., etc.

Separava-se a carne para rojões que de imediato se vertia para caldeiros de cobre, onde a lume brando se iam estrugindo no unto de pão até ganharem uma cor rosada indiciadora de que estavam prontos para irem para os potes de porcelana, onde ficavam afogados em banha, à espera de utilização futura: - quase sempre breve, ali em casa.

Chegava, então um momento porque há muito ansiava: o hábito de levar o prato aos familiares e amigos: cortada uma febra, juntavam-se umas peças de sarrabulho e fígado, umas folhas de louro e sainhas, e em casos de graduação especial um ou outro rojão. E lá ia eu, lépido, com o cestinho – eu queria lá saber do aspecto! - entregar o dito, esperando, como sempre acontecia, por uma gorjeta, que acumulada de casa em casa, me rendia pecúlio apreciável, quase sempre para investir numa bola de futebol. E não se julgue que eram poucos os distinguidos. Não!.., que a família era grande, acrescendo que para lá desta, havia os amigos, os capitães a quem se retribuía a habitual oferenda da cestada de caras, línguas e samos, que viriam perto do Natal. Por isso, não raro, ouvia minha mãe lamuriar-se, que por maior que fosse o bicho – e era, pois meu pai fazia gala de atingir as 16 arrobas –ia-se todo nos pratos.

Claro que minha mãe não estava a fazer contas, ao que por aquelas épocas recebia, pois este hábito -o prato - era uma perfeita troca, que até fazia jeito, pois não havendo ainda frigoríficos, estas trocas permitiam, pelo menos por estas épocas e durante semanas, comer-se carne sempre fresquinha, o que era um maná. Feitas bem as contas não se ficava a perder, pois todos se esmeravam na oferta. Grandes hábitos, tradições que vinham do tempo onde respeitáveis gentes faziam agasalho da amizade.

À noite, tudo escufenado e ordenado, depois de uma «banhoca» lá voltavam para uma segunda emposta, à mesa. Os convivas aumentavam no número, pelo que as travessas de rojoada eram, só por elas, por tão abundosas, de uma imponência de recriar o olhar guloso.

Por norma, este dia era menos familiar, mais voltado para os amigos. Sempre muitos e dos bons.

Na cozinha, o mulherio preparava a carne para avinhar, e com ela bem temperada, encher a tripalhada já limpa, a aguardar hora de saltar para o fumeiro.

A matança chegava ao fim; novos seis meses para engorda de novo bácoro, entretanto já adquirido na «feira dos treze», e que prometia boa e anafada engorda.

A vida recomeçava então, de novo; colocar o «brinco» no animal para ele não refocilar; chamar o alvitar para o capar, não fossem os apetites estranhos pôr em causa a engorda, atrasando-a, dar-lhe umas colheradas de óleo de fígado de bacalhau para lhe abrir o apetite, boas couves para deslassar o trânsito intestinal, e assim emborcar mais abóbora misturada na farinha que vinha do moleiro de Vale de Ílhavo. E todos os dias avaliar «os gramas» da engorda.

Era bonita esta vida, onde uma boa parte do que comíamos, vinha ali do quintal ao lado: do aido de «Cima» ou do «Lá de Baixo».

A vida tinha encantos; a televisão não invadia o seroar; contavam-se estórias da história, a mesa era local privilegiado de reunião familiar, onde com requinte se depunham vitualhas feitas com tempo e gosto, que paulatinamente – o tempo corria mais devagar! - se iam degustando.

As tradições valiam, ainda então, como ouro de lei, a respeitar.

Senos da Fonseca

Novembro 2007
[1] Este meu Tio era o executor e guardador do arco triunfal da Sr.ª do Pranto.
Era um poço de sabedoria. Sempre bem disposto, mesmo quando já cego ,dava conselhos amiúde. Lembro-me de um, jocoso :”olha rapaz,a mulher é como a pipa. Quando lhe tirares a espicha vê se esguicha. Se não esguichar, outros lá andaram a bebericar”